Transformando a cadeira em nave espacial na imaginação de Diego, família e amigos embarcam numa jornada de sonhos e descobertas.
Capítulo 91 - A Cadeira Que Virou Nave
Há dias em que a imaginação se torna o combustível mais potente para atravessar a realidade. Foi assim com a cadeira que virou nave. Tudo começou com uma história que li para Diego numa noite fria de domingo, quando a chuva insistia em bater no telhado e o vento uivava pelas frestas. O livro falava de um menino que transformava objetos comuns em veículos fantásticos. Uma caixa virava barco, um lençol virava asa-delta, uma panela virava capacete de astronauta. Diego, com os olhos atentos, acompanhava cada aventura. Sombra, ao nosso lado, ouvia com a cabeça apoiada em meu colo, respirando compassadamente. Quando fechei o livro, Diego não demorou a escrever no tablet: “Minha cadeira pode ser nave?”. Sorri. — Claro que pode. Basta querer.
No dia seguinte, ele acordou com uma energia diferente. Pegou papel e caneta, desenhou uma cadeira com asas e fogo saindo das rodas. Escreveu ao lado: “Nave de rodas”. Lembrei-me imediatamente de nossas jornadas: a cadeira manual, a motorizada, o carrinho de pedal. Cada uma, à sua maneira, havia sido uma nave, levando-nos a destinos inimagináveis. Mas a ideia de transformar a cadeira de rodas em nave espacial, ainda que na fantasia, tinha um sabor novo. Eu sabia que Diego precisava disso: uma brincadeira capaz de ampliar seu mundo interior, de dar asas a quem a sociedade tenta limitar.
Contei a Lídia e a Clara sobre a nova aventura. As duas se animaram. Lídia sugeriu que fizéssemos um projeto com a turma sobre universo, estrelas e viagens espaciais. Clara disse que poderíamos usar a imaginação na terapia, trabalhar palavras novas, sons de foguetes, nomes de planetas. Lourdes, ao saber, ofereceu-se para costurar um “cinto de astronauta” para Diego. Dona Helena mandou um capacete de papel-machê, pintado de prata. Bolt teria uma espécie de antena feita de arame. Sombra, claro, receberia um lenço com estrelas. Carlos, sempre engenhoso, trouxe caixas de papelão grandes, rolos de papel alumínio, pedaços de plástico colorido. — Vamos construir uma nave de verdade para a cadeira — disse. — Pelo menos por fora. — Assim, aos poucos, a comunidade entrou na brincadeira. A rua virou NASA.
No sábado, reunimos-nos na garagem. Espalhamos jornais no chão, abrimos as caixas, separamos fitas, tesouras, tintas. Diego estava eufórico. Escrevia no tablet orientações: “A asa precisa ser grande”, “O fogo é vermelho e laranja”, “Preciso de um painel de controle”. Carlos colou papel alumínio em volta da cadeira, transformando-a em metal brilhante. Lourdes costurou um cinto com velcro, para que Diego se sentisse preso na nave. Lídia ajudou as crianças a recortar estrelas de cartolina que colamos nas rodas. Clara trouxe adesivos de planetas que espalhamos pelo painel da cadeira. Eu pintei um tubo de papelão de vermelho e laranja, transformando-o em um “propulsor”, e o prendi atrás da cadeira com fita. Sombra observava, às vezes colocava o focinho em cima de um pedaço de papelão e lambia cola, e nós ríamos. Bolt tentava ajudar, mas acabava com tintas na pata.
Quando tudo estava pronto, nos afastamos para ver o resultado. A cadeira, agora transformada, era, de fato, uma nave espacial. Tinha asas de papelão pintadas, um propulsor flamejante, um painel cheio de adesivos, um capacete de astronauta sob o assento, e até um mini radar feito de um antigo CD e um palito. Diego olhou, olhos esbugalhados, e escreveu: “Minha nave!”. Sentei-me na frente dele, segurei suas mãos e respondi: — Sim, e você é o comandante. — Sombra latiu, como se aprovasse. Carlos sorriu orgulhoso. Lídia e Clara tiraram fotos. As crianças aplaudiram. Dona Helena chorou, emocionada. — É a cadeira que virou nave! — disse, rindo.
O passo seguinte era, claro, decolar. Mas uma nave não decola em qualquer lugar. A rua, com seus buracos e postes, não era segura. Decidimos que o lançamento aconteceria no campo da escola, um espaço aberto, gramado, onde poderíamos imaginar que era uma plataforma de lançamento. No dia marcado, levamos a nave até lá. O campo estava decorado com bandeirinhas de planetas, feitos pelas crianças. Havia um grande banner escrito “Base de Lançamento Diego”. Clara distribuiu boletins de lançamento que explicavam o plano: contagem regressiva, ligar motores (fazer barulhos de foguete com a boca), decolar (mover a cadeira), pousar (parar na linha marcada). Todos estavam empolgados. Lídia, como boa organizadora, segurava um megafone de brinquedo e explicava aos “astronautas” o que fazer.
Diego posicionou a cadeira na linha de largada. Sombra sentou-se ao lado, com um lenço estrelado no pescoço e o focinho alto, como se respirasse a atmosfera. As crianças, enfileiradas, faziam sons de foguetes: “Fshhhhh”, “Ruuummm”. Carlos, atrás, segurava a cadeira para o caso de precisar frear. Eu, ao lado, segurava a mão de Diego, mas sem interferir. — Pronto? — perguntei. Ele escreveu: “Pronto!”. Lídia levantou a mão e começou a contagem: — Dez, nove, oito... — As vozes se uniram: — Sete, seis, cinco... — Diego sorria, ansioso: — Quatro, três, dois, um! — E todos gritaram: — Decolar!
Diego avançou com a cadeira. Sombra correu ao lado. As crianças correram atrás, imitando naves. Bolt tentou acompanhar. O barulho de pequenas bocas imitando foguetes enchia o campo. Lídia usava o megafone para narrar: — Estamos decolando! Deixando a atmosfera! Rumo à Lua! — Diego, concentrado, dirigia a nave com habilidade. A cadeira parecia deslizar na grama, as asas balançavam ao vento. No meio do campo, ele fez uma curva; as crianças gritaram de emoção. Clara, correndo atrás, filmava tudo. Dona Helena, com um chapéu de astrônomo, aplaudia. Lourdes segurava Bolt, rindo. Carlos olhava para Diego com um orgulho que eu conheço bem.
Depois de duas voltas, Diego parou a cadeira na linha de chegada. Desligou os motores, ou melhor, parou o joystick. Todos correram para abraçá-lo. Lídia, emocionada, disse: — Missão concluída com sucesso! — Clara perguntou: — Como foi sua viagem, comandante? — Diego escreveu: “Melhor do que um foguete de verdade.”. As crianças gritaram “Eba!” e começaram a pedir para pilotar a nave também. Rimos. Combinamos que, naquela manhã, outras crianças poderiam sentir como era ser astronauta. Ajustamos cintos, colocamos capacetes, empurramos a nave, fizemos barulhos de foguete. Cada criança que passava pela nave saía com os olhos brilhando. E Diego, ao lado, era o chefe da base. Dava dicas, segurava o tablet e escrevia instruções: “Não virar rápido.”, “Segurar forte.”, “Cuidado com Sombra.”. Sombra, por sua vez, corria ao lado de cada nave, participando das aventuras como se fossem reais.
O exercício continuou por horas. Quando o sol começou a se esconder, encerramos. Voltamos para casa exaustos, mas felizes. À noite, enquanto Diego dormia, relendo o livro do menino que transformava objetos, sentei-me na sala e pensei no poder da imaginação. A cadeira de Diego, que um dia foi motivo de dor, de frustração, agora era uma nave espacial que lhe dava alegria. Pensei no que significa transformar algo tão ligado à deficiência em algo ligado ao sonho. E percebi que, no fundo, tudo depende de como olhamos. Com criatividade e apoio, qualquer limite pode ganhar outra forma.
Nos dias seguintes, a história da cadeira-nave espalhou-se. Pessoas do bairro perguntavam quando seria o próximo lançamento. Lídia preparou uma apresentação com as fotos e vídeos para mostrar na reunião da escola. Clara levou os vídeos para uma conferência sobre inclusão, para mostrar como o lúdico pode integrar. Até pessoas de outros bairros mandaram mensagens: “Podemos levar a nossa cadeira para virar nave também?”. Eu respondia que sim, que era só usar papel, cola e imaginação. Recebemos fotos de outras crianças transformando cadeiras, andadores, muletas em naves, aviões e carros de corrida. A comunidade digital crescia. E a ideia de transformar o que é visto como limitação em arte e sonho me enchia de esperança.
Certo dia, caminhando na rua, uma senhora, que mal conhecia, parou-me e disse: — Você é a mãe do menino da cadeira-nave? — Respondi que sim, surpresa. — Quero agradecer — continuou. — Ver aquilo me fez ver meu andador com outros olhos. Pintei-o de amarelo e agora o chamo de “meu avião”. — Choramos e nos abraçamos. — É incrível como um gesto simples pode mudar a percepção — pensei. Em casa, contei a história a Diego. Ele sorriu e escreveu: “Somos astronautas na terra.”. Achei poético.
Essa experiência também nos fez refletir sobre acessibilidade. Carlos sugeriu que pudéssemos levar a nave a outras instituições, para mostrar que cadeiras são ferramentas, não prisões. Clara conversou com terapeutas sobre a importância do lúdico. Lídia escreveu um texto no blog da escola sobre “Cadeiras que voam”. Um pai de um aluno sugeriu uma oficina mensal de customização de dispositivos. Lourdes pensou em fazer uma feira onde cada um podia mostrar seu meio de transporte personalizado. A ideia foi tomando forma. Em poucas semanas, estávamos organizando um evento chamado “Rodas e Asas”, onde cada participante levaria algo que o ajudava a se locomover e personalizaria com elementos que representassem seus sonhos. A praça ficou colorida de bengalas decoradas, skates com pintura de dragões, bicicletas com flores, cadeiras de rodas com asas, andadores com luzes.
No evento, Diego levou sua nave. Não era apenas uma peça de cartolina; era símbolo de transformação. As pessoas o abordavam, perguntavam como ele fizera, quem havia ajudado. Ele escrevia no tablet: “Meus amigos e minha família.”. Sombra, ao lado, com seu lenço estrelado, virou atração. As crianças faziam carinho, e ele lambia. Dona Helena vendia brownies decorados com foguetes. Lourdes distribuía pipoca. Lídia e Clara conduziam atividades. Um senhor com paralisia cerebral, que usava cadeira, se emocionou. — Nunca pensei que poderia ver algo assim — disse. — Sempre vi minha cadeira como um peso. Hoje vejo como asas. — Lágrimas. Abraços.
Um momento marcante da feira foi quando uma menina, de cerca de oito anos, perguntou a Diego: — Por que sua cadeira é uma nave? — Ele pensou e escreveu: “Porque eu quis.”. A menina sorriu e respondeu: — Então o meu patinete é um barco. — Pegou um canetão, desenhou ondas azuis no patinete e começou a “remar” pela praça. O mundo dela transformou-se em mar. Outras crianças seguiram, desenhando montanhas nas bicicletas, nuvens nos skates. A criatividade contagiante fez o evento transbordar em alegria.
À noite, exaustos, voltamos para casa. Sentei-me com Diego na cama. Estávamos ambos com olhos pesados, mas a mente ainda fervilhava. Perguntei o que ele tinha aprendido naquele dia. Ele escreveu: “Que tudo pode virar outra coisa.”. Fiquei pensando. — E o que você quer que vire o que amanhã? — perguntei. Ele sorriu, pensou, e escreveu: “Não sei. Talvez a mesa vire pista de dança?”. Rimos. Sombra, deitado aos pés, ergueu a cabeça, como quem diz: “Estou dentro”. Agradeci por ter um filho com tanta imaginação. E por ter uma comunidade que topa entrar nas nossas loucuras.
Dias depois, Dona Helena me chamou novamente para um café. — Já pensou no próximo projeto? — perguntou, piscando. Ri. — Acho que preciso descansar — respondi. — Mas sei que não vai demorar para Diego inventar algo novo. — Ela assentiu. — E nós estaremos aqui. — Tomei um gole de café e senti o sabor da vida. Uma mistura de amargo e doce, que se torna agradável quando se compartilha.
A cadeira que virou nave transformou-nos mais do que transformou o objeto. Mostrou-nos a importância de olhar para além do óbvio, de colorir a rotina, de acreditar no poder da imaginação. Lembrou-nos que nossos filhos, com ou sem deficiência, precisam de aventuras, de histórias que alimentem a alma. Reforçou a ideia de que cada dispositivo de apoio, cada auxílio de mobilidade, pode ser mais que uma ferramenta funcional; pode ser uma porta de entrada para sonhos. E, acima de tudo, mostrou que quando temos amor, amigos, uma vizinhança solidária e um cão fiel, até as viagens espaciais se tornam possíveis, mesmo que na calçada de casa.
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