Uma rifa solidária une a comunidade, transforma a vida de Diego e Sombra e mostra que sonhos se concretizam quando compartilhados.
Capítulo 88 - O Sorteio Que Mudou Tudo
Tudo começou com uma conversa despretensiosa na cozinha de Dona Helena. Era uma tarde de sexta-feira, o cheiro de bolo de fubá com erva-doce se espalhando pela casa, e ela me chamou para um café. — Senta aqui, minha filha — disse, empurrando uma cadeira para mim. — Precisamos conversar sobre algo importante. — Abri um sorriso, curiosa. Sempre que Dona Helena usava aquele tom, vinha coisa boa ou grande. Às vezes, uma fofoca sobre a vizinha; outras, algo que fazia a rua inteira se mobilizar.
Ela serviu o café, ajeitou o avental e, com olhos brilhando, começou: — Você sabe o quanto eu admiro vocês, né? — Assenti. — E sei que os sonhos do Diego são grandes, maiores que essas nossas ruas. — Suspirei, já imaginando para onde iria a conversa. — Tenho percebido o quanto a cadeira motorizada mudou a vida de vocês. Mas sei que há mais coisas que podem facilitar. — Dei de ombros. De fato, sempre havia mais. Próteses, terapias, equipamentos. Mas cada coisa vinha com seu preço. — Eu estava pensando... e se fizéssemos um sorteio? — perguntou. — Uma rifa, uma ação entre amigos. — Franzi a testa, confusa. Dona Helena explicou que, naquela semana, vira uma reportagem sobre pessoas que organizam sorteios de produtos ou serviços, arrecadam dinheiro e destinam a alguém. — A gente escolhe um prêmio, vende os números, e o dinheiro vai para o Diego — completou, gesticulando com as mãos. — Pode ser para comprar aquele aparelho de fala, ou para ajudar em uma viagem para a praia. — Senti meu peito aquecer. Era mais uma vez a comunidade pensando em nós.
Saí da casa de Dona Helena com a cabeça a mil. Fui direto conversar com Carlos. Contei-lhe a ideia. Ele me ouviu atentamente, pensou e disse: — Pode dar certo. As pessoas querem ajudar, mas às vezes não sabem como. — Falamos sobre o prêmio. O que poderia atrair a atenção de gente diversa? — Pode ser uma cesta de produtos da fazenda — sugeriu ele. — Ou um final de semana em uma pousada. — Pensei na bicicleta do vizinho, na TV que ninguém usa. Mas nada parecia significativo. Foi então que Diego, que ouvia de canto, escreveu no tablet: “Sombra?”. Ri. — Não podemos rifar o Sombra — respondi, rindo. Ele riu também. — Só se for um passeio com Sombra — brincou Carlos. E a ideia se enraizou ali.
Na manhã seguinte, a rua fervilhava. Dona Helena já tinha espalhado a notícia. Lourdes, sempre atenta, ofereceu-se para fazer brownies. O tio do açougue disse que doaria uma cesta de carnes. Lídia se dispôs a mobilizar a escola. Clara, a fonoaudióloga, ofereceu uma avaliação gratuita para quem comprasse dez números. Todos queriam contribuir. Foi quando Sombra, brincando com Bolt no quintal, inspirou-nos de novo. — E se o prêmio principal for um dia inteiro com Sombra e Bolt na escola? — sugeri. — As crianças adorariam. — Lídia amou a ideia. — Podemos fazer um evento especial, mostrar como é a terapia com cães, ensinar comandos básicos. — E foi assim que “O Dia com Sombra e Bolt” se tornou o prêmio mais cobiçado da rifa.
O planejamento começou a tomar forma. Criamos cartelas de rifa com números de 1 a 500. Cada número custaria um valor simbólico. Escrevemos à mão os bilhetes, recortamos com cuidado, numeramos e grampeamos. Eu lembrava dos antigos bingos na igreja quando criança. Era nostálgico e ao mesmo tempo emocionante. Lídia avisou os pais. Lourdes fez um post em grupo de bairro. Dona Helena bateu de porta em porta. Em poucos dias, quase todos os números estavam vendidos. A gente nem acreditava. — Eu nunca pensei que seria tão rápido — falei para Carlos. — Parece que todos estavam esperando uma oportunidade de ajudar — respondeu ele. Era verdade. O amor se revela nas pequenas ações.
Diego acompanhava tudo de perto. Ele ajudou a recortar os bilhetes, colocando etiquetas com números, revisando para ver se nenhum se repetia. Ele escrevia no tablet uma lista de compradores. — Olha, o número 17 é da professora de ciências — escrevia. — E o 42 da Dona Sílvia. — Sorríamos. — Sombra está animado? — escrevi uma vez. Ele colocou a mão no peito, sorriu e escreveu: “Vai ser divertido.” No fundo, percebi que para Diego o sorteio era mais do que arrecadação. Era outra forma de celebrar Sombra, Bolt e a comunidade.
No dia do sorteio, a rua estava em festa. Montamos uma mesa no centro da rua, com uma caixa grande e transparente que virou a urna. As crianças correram para ver seus números sendo colocados. Havia música baixa, cheiros de comida, risos altos. As cartelas restantes foram vendidas na hora. Lídia e Clara estavam lá, seguidas de pais, mães, avós. O clima era de união. Sombra e Bolt, enfeitados com lenços coloridos, circulavam, recebendo carinho, lambendo mãos, abanando rabos. Diego, com a cadeira motorizada, passeava ao redor, controlando habilmente, mostrando a todos como a autonomia lhe caía bem. Cada vez que alguém o elogiava, ele mostrava a cartela, escrevendo: “Boa sorte!”.
Quando chegou a hora do sorteio, todos se acomodaram. Carlos pegou um microfone, improvisado com uma caixa de som, e começou a falar: — Quero agradecer a presença de todos — disse. — Tudo o que estamos fazendo é por amor a uma causa e a um sonho. Vocês sabem que nosso filho, o Diego, tem sonhos grandes. Sonhos que se realizam porque pessoas como vocês tornam possível. — Aplausos. Eu, emocionada, enxugava lágrimas. — O prêmio principal hoje é um dia de terapia assistida com Sombra e Bolt — continuou Carlos. — Mas, mais do que isso, é um dia de aprendizado sobre inclusão, paciência e amizade. — Outra salva de palmas. Carlos girou a urna algumas vezes, deixou Diego aproximar-se e colocar a mão. Diego entrou com a mão, mexeu nos papéis e tirou um. — O número sorteado é... — Carlos anunciou. — ... 283! — Todos olharam ao redor, procurando. Dona Helena gritou: — É meu número! — A rua explodiu em palmas. Ela foi até a mesa, pegou o prêmio e, com lágrimas nos olhos, falou no microfone: — Eu comprei tantos números para não ganhar nada. Queria apenas ajudar. Mas, já que ganhei, quero doar o prêmio. — Silêncio. — Quero que esse dia seja sorteado de novo, para outra criança, alguém que ainda não conhece Sombra e Bolt. — As pessoas ficaram surpresas. — E os outros prêmios? — perguntou alguém. — Darei para as crianças comerem na hora — completou.
Fizemos um segundo sorteio. Dessa vez, saiu o número de João, um menino do bairro que adorava cachorros, mas os pais nunca tinham tempo para levá-lo a um adestrador. Ele vibrou, correu para abraçar os cachorros. A mãe, emocionada, agradeceu. — Ele fala nisso há semanas! — E foi assim que o prêmio principal encontrou um destino inesperado. Quando pensei que a noite terminaria aí, outra surpresa veio. Dona Helena, ainda com o microfone, pediu silêncio. — Pessoal, ainda tenho um último anúncio — disse. — O dinheiro arrecadado neste sorteio não será apenas para um projeto. Nós arrecadamos mais do que imaginávamos. E, conversando com Carlos e com a mãe do Diego, decidimos que a metade vai ser destinada a uma causa nossa. — Fez uma pausa. — Vamos comprar um tablet para a biblioteca da escola, para que mais crianças possam aprender a se comunicar como o Diego. — Aplausos novamente, lágrimas, abraços. — A outra metade será usada para uma viagem especial que o Diego sempre sonhou: conhecer o mar com o Sombra. — Meu coração disparou.
Nunca tínhamos falado publicamente sobre o sonho de levar Diego à praia. Ele assistia vídeos de mar e ria das ondas, mas nunca havíamos ido por várias razões: mobilidade, custos, organização. Naquele momento, senti que tudo conspirava a favor. Todos começaram a aplaudir. Lourdes, com Bolt no colo, chorava. Lídia me abraçou. Clara sussurrava: — Vai acontecer. — E eu chorava. Não era só o dinheiro. Era o gesto. A comunidade estava investindo em nós, em nossos sonhos. Sentia-me acolhida, amada. Diego, ainda sem entender completamente, olhou para mim. Escreveu no tablet: “Vamos ver o mar?”. Enxuguei o rosto. — Sim — respondi, com a voz trêmula. — Vamos.
Os dias que se seguiram foram de planejamento e euforia. Recebemos a lista de doadores, fizemos uma planilha com Carlos. Dividimos o dinheiro como combinado: parte foi para a compra do tablet para a escola, parte para a viagem. Começamos a pesquisar pousadas acessíveis, transporte adaptado, datas. Tia Helena ofereceu-se para cuidar da nossa horta. Lourdes emprestou um carrinho adaptado para transportar Sombra. Clara ficou responsável por elaborar atividades para a viagem, e Lídia mobilizou a escola para fazer uma despedida. Foi como se o sorteio tivesse catalisado uma corrente de acontecimentos.
O dia da viagem chegou rápido. Acordamos cedo, arrumamos malas com roupas leves, protetor solar, remédios de Sombra, brinquedos. Diego estava elétrico. Escrevia no tablet: “Mar”, “Areia”, “Sombra brinca”. Sombra, por sua vez, parecia saber que algo grande aconteceria. Abanava o rabo, cheirava as malas, corria de um lado para o outro. Carlos cuidava dos detalhes do carro, conferindo se as rampas estavam firmes. Os vizinhos passaram para nos desejar boa viagem. Lídia apareceu com o tablet novo para a biblioteca e lágrimas nos olhos. — Vocês merecem — disse. — Tirem fotos. — Helena, com olhos marejados, deu-me um abraço e sussurrou: — Valeu a pena cada número vendido. — Lourdes trouxe uma sacola com brownies. Disse que a praia combinava com chocolate. Bolt, ao lado, abanava o rabo.
A viagem foi longa, mas tranquila. Paramos em postos de gasolina, esticamos as pernas, deixamos Sombra beber água, fizemos lanche. Diego dormiu parte do caminho, sonhando, talvez, com as ondas. Quando chegamos à pousada, fomos recebidos com sorrisos. Havia uma rampa linda na entrada. O quarto adaptado tinha espaço para a cadeira, banheiro com barras. A pousada ficava a poucos metros da praia. Quando saímos pela primeira vez, o mar nos recebeu com um cheiro inconfundível de sal e liberdade. Diego olhou, arregalou os olhos, colocou a mão na boca e escreveu: “Grande mundo!”. Eu chorei. Sombra correu, enfiou as patas na areia, latiu. Carlos me abraçou. Era a primeira vez dele também. Caminhamos juntos até a água. O frio da água nos pés foi um choque delicioso. Diego ria, jogava água. Sombra corria, mordia as ondas, como se fossem brinquedos. Ficamos ali por horas, descobrindo sensações novas.
Durante a viagem, pensamos muito no sorteio. Cada onda que quebrava, eu lembrava de cada número vendido, cada bilhete preenchido. Cada sorvete que tomávamos, lembrava de cada vez que entregamos cartelas. No último dia, na areia, escrevi com o dedo: “Obrigado”. Senti que era um agradecimento não só ao universo, mas a todos que participaram. Diego escreveu ao lado: “Amigos”. Sombra deitou perto e, com a pata, apagou parte da palavra, como se estivesse dizendo: “Estaremos sempre juntos”.
Ao voltarmos para casa, uma festa nos esperava. A rua estava enfeitada, balões azuis e brancos pendurados, cartazes de “Bem-vindos!” e “Como foi o mar?”. As crianças correram para nos abraçar, perguntando sobre as ondas, a areia, o gosto da água. Diego contou com gestos e palavras, usando o tablet. As tias quiseram ver fotos. Dona Helena chorava novamente. — Vocês viram que valeu a pena, né? — dizia. — Um sorteio, um sonho, um mar. — Eu a abracei. Disse que o sorteio mudou tudo. Não só porque concretizou um sonho, mas porque nos mostrou, mais uma vez, o poder da coletividade.
O sorteio, afinal, não foi apenas um sorteio. Foi um símbolo de união. Foi a prova de que quando uma comunidade se mobiliza, sonhos se realizam. Foi a continuidade de uma história que começou com a adoção de um cão, passou por um curso de adestramento, seguiu por uma cadeira motorizada e agora alcançava o mar. Cada etapa dessa história parecia impossível em algum momento. E, ainda assim, acontecia. O sorteio nos ensinou que pedir ajuda não é vergonha; é abrir portas para que outros exercitem sua solidariedade. Ensinou que os prêmios mais valiosos nem sempre são objetos, mas experiências compartilhadas.
Hoje, quando vejo o tablet na biblioteca da escola, lembro que a metade do dinheiro foi para lá. Vejo crianças usando-o para comunicar-se, como Diego fez e faz. Vejo professores usando-o para ensinar palavras em Libras, crianças inventando histórias. E lembro que tudo começou com um sorteio que mudou tudo. Quando olho para o álbum de fotos da viagem, vejo Diego e Sombra olhando o mar, e sinto que há ondas que chegam aos nossos pés muito antes de pisarmos na areia. São ondas de amor, empatia e comunidade.
A rua ainda comenta, vez ou outra, sobre a “rifa do Diego”. Alguns perguntam quando será a próxima. Rimos, respondemos que talvez haja outra, quem sabe. Porque sonhos não acabam. Eles se transformam. E, se um sorteio fez tanta diferença, quem sabe que outras ações podemos inventar? A verdade é que aprendemos que, juntos, somos mais fortes. Que cada número vendido foi um pedaço de mar, uma rampa, um tablet, um sorriso, uma lágrima de alegria. Que o prêmio principal, um dia com Sombra e Bolt, foi simbólico: um dia de amor. E que o prêmio que nós ganhamos foi ainda maior: a certeza de que não estamos sozinhos.
Assim termina essa história, mas não termina nosso percurso. O sorteio que mudou tudo foi mais do que arrecadar dinheiro. Foi um ensaio de comunidade, um ensaio de amor coletivo. E, sempre que Diego escreve “Obrigado” no tablet, sempre que Sombra late para cumprimentar um vizinho, sempre que uma criança da escola toca o novo tablet, lembro-me daquele dia. E sorrio. Porque sei que, na vida, são essas ações de muitos que mudam a história de poucos — e, consequentemente, a de todos.
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