Diego imagina a liberdade de uma cadeira motorizada e vê a comunidade se unir, mostrando que sonhos compartilhados podem mudar vidas.
Capítulo 87 - O Sonho da Cadeira Motorizada
No começo, foi apenas um pensamento que surgiu inesperadamente numa tarde de inverno. O sol estava baixo, lançando raios tímidos sobre o quintal, e eu acompanhava Diego enquanto ele treinava palavras no tablet. Ele havia aprendido recentemente a escrever “mundo” e “grande”. Escreveu as duas palavras de novo, olhou para mim, e fez um gesto com as mãos. Fez um “v” com os dedos e depois desenhou um círculo no ar. Eu não entendi imediatamente. Ele franziu a testa, pegou o tablet e digitou lentamente: “Ir longe? Grande mundo?”. Sorri, entendi. Ele queria explorar mais, alcançar o mundo além das nossas ruas. O que para muitos era algo simples — caminhar ou correr — para Diego significava vários cuidados, adaptações e, principalmente, cansaço. A cadeira de rodas manual, apesar de robusta, limitava sua autonomia. Ele precisava da força dos braços, ou que alguém o empurrasse, para percorrer distâncias maiores. A ideia de ir longe era, ao mesmo tempo, um sonho e um desafio.
Foi alguns dias depois que vi, pela primeira vez, uma cadeira motorizada. Estávamos na feira do bairro quando um homem, sorridente, passou por nós sentado em uma cadeira que se deslocava silenciosamente. Ele controlava o movimento com uma pequena alavanca. Seu rosto emanava liberdade. Diego observou fascinado. Olhou para mim e escreveu: “A cadeira dele anda sozinha?”. Respondi: — Ele controla com a mão, amor. — Ele sorriu. Meus pensamentos começaram a voar. Uma cadeira motorizada poderia mudar tanto para nós. Poderia dar a Diego a independência de decidir seu trajeto, de visitar a vizinha, de passear com Sombra sem depender de minha força ou da inclinação das ruas.
Mas, tão rápido quanto a animação veio, a realidade se impôs. Cadeiras motorizadas são caras, precisam de manutenção, exigem adaptações em casa. Eu sabia de outras famílias que batalhavam por anos para conseguir uma. Perguntei-me se deveríamos nutrir esse sonho. Não queria criar expectativas para depois lidar com frustrações. No entanto, aquela imagem de Diego sorrindo ao ver a cadeira motorizada ficou na minha mente. Voltei para casa pesquisando possibilidades. Lembrei do curso que fizera para treinar Sombra, como o Curso de Adestrador de Cães mostrara-me que capacitação e preparação podem abrir portas inesperadas. E pensei: talvez seja hora de sonhar alto de novo.
Conversei com Carlos naquela noite. Sentamos à mesa da cozinha, como fazíamos quando o assunto era sério. Contei-lhe sobre o sonho da cadeira motorizada. Seus olhos refletiam os meus: esperança e medo. Ele fez perguntas pragmáticas: — Quanto custa? Como carregar a bateria? A casa precisa de adaptação? — Eu ainda não tinha todas as respostas. Sugeri que começássemos a pesquisar. — A cadeira é mais do que um objeto — expliquei. — É um símbolo de liberdade para ele. — Carlos assentiu. — Se for viável, fazemos acontecer — prometeu. — E, se não for, encontraremos outra forma de aproximar o mundo de nosso filho. — Foi reconfortante. Dividir um sonho o torna mais leve.
No dia seguinte, durante a aula de terapia, mencionei o assunto a Clara, a fonoaudióloga, e a Lídia, a professora de inclusão. Ambas se emocionaram. — Uma cadeira motorizada poderia ajudá-lo a participar de mais atividades com os colegas — disse Lídia. — Ele não precisaria gastar energia no deslocamento e poderia se concentrar mais nas interações — completou Clara. Perguntaram se eu já tinha orçado. Disse que não. Elas se ofereceram para ajudar na pesquisa. Sentimos, novamente, que não estávamos sozinhos. De repente, o sonho tomou forma de possibilidade.
Diego, por sua vez, falava — ou melhor, escrevia — frequentemente sobre a cadeira motorizada. Escrevia “cadeira” no tablet, fazia o gesto de andar com as mãos e escrevia “voar”. Certa vez, perguntou: “Se eu tiver cadeira que anda, posso ir na praça sozinho?”. Respondi que teríamos que combinar regras, que ele ainda precisaria de acompanhamento em alguns lugares. Mas eu percebia a sede de independência. Lembrei de quando, criança, eu tinha vontade de andar de bicicleta na rua sem que minha mãe segurasse o selim. Era parecido. Guardava a mesma sensação de querer explorar, mas também o medo de cair. Compreendi que, para Diego, a cadeira motorizada era a bicicleta da infância. Uma conquista de autonomia.
As buscas iniciaram. Lídia passou-me links de empresas que vendiam cadeiras motorizadas. Clara falou de ONGs que doavam equipamentos. Fui a grupos de pais na internet, li depoimentos, tirei dúvidas. Os preços variavam muito, de valores mais acessíveis a cifras que nos deixavam assustados. A burocracia para solicitar cadeiras pelo sistema público de saúde era grande. Havia listas de espera, laudos, perícias. Eu sabia que teria que ser insistente. Passei noites lendo informações técnicas: peso, autonomia de bateria, ajuste de assento. Aprendi termos como “joystick” e “motor brushless”. Liguei para lugares, recebi orçamentos. Cada valor parecia uma montanha. Pensei em desistir algumas vezes. Lembrei-me do curso de Sombra: ele me ensinara que paciência e persistência andam de mãos dadas. Continuei.
Carlos e eu decidimos abrir uma conta de poupança para o projeto. Cada centavo que sobrava, guardávamos. Conversamos com um primo que entendia de mecânica, que se ofereceu para verificar a cadeira assim que a tivéssemos. A escola, ao saber da iniciativa, organizou uma feira de talentos para arrecadar fundos. As crianças venderam artesanatos, bolos, desenhos. Diego fez cartões escritos “Obrigado” para cada comprador. Sombra, ao lado da banca, abanava o rabo, atraindo mais público. Lourdes fez biscoitos para cães e vendeu também. A comunidade abraçou o sonho.
Enquanto isso, em casa, sonhávamos juntos. Diego assistia vídeos de pessoas usando cadeiras motorizadas. Desenhava cadeiras com asas. Escrevia histórias em que uma cadeira voadora o levava a países distantes. Eu imaginava os passeios no parque sem empurrar, as idas ao mercado sem cansaço. A possibilidade de Diego passear com Sombra sem minha ajuda me dava arrepio. Imaginava também as adaptações: rampas na casa, tomadas para carregar a bateria, seguro contra furtos. O sonho era acompanhado de planejamento. E isso me animava. Sombra, deitado ao lado de Diego, parecia sonhar conosco, suas patas se mexendo como se estivesse correndo.
Havia um ponto que me preocupava: como Sombra se adaptaria a andar ao lado de uma cadeira motorizada? Ele sempre caminhara ao ritmo da cadeira manual. Uma motorizada seria mais rápida, faria barulhos diferentes. Decidi que deveria prepará-lo. Voltei às apostilas do curso de adestramento, procurei por módulos sobre adaptação a máquinas. Encontrei dicas de apresentação gradual: colocar o cão ao lado de um aspirador de pó, depois de uma moto desligada, ligar e desligar para acostumar com o som. Fizemos tudo devagar. Mostrei a Sombra vídeos de cadeiras motorizadas; liguei e desliguei um ventilador portátil perto dele; gradativamente trouxe-o para perto de um carrinho elétrico infantil de um vizinho. Ele farejava, recuava, voltava. Cada pequeno passo era comemorado com petiscos. Diego assistia, torcia. — Ele também tem que aprender — escrevi no tablet. — “Nós três” — respondeu Diego. E sorriu.
Os meses passaram. Um dia, recebi uma ligação inesperada. Era a diretora da escola. — Precisamos que você e Diego venham aqui amanhã à tarde — disse ela, com voz emocionada. — É uma surpresa. — Fiquei intrigada. Pela manhã, saímos apressados. Sombra nos acompanhou. Chegando à escola, notei uma agitação incomum. Balões azuis e vermelhos decoravam o corredor. As crianças estavam alinhadas, com cartazes. Na frente, Lídia segurava um envelope. Clara estava ao seu lado. Ao nos ver, as crianças começaram a bater palmas. Diego olhou para mim, confuso. — O que está acontecendo? — perguntou no tablet. Lídia tomou a palavra: — Diego, hoje é um dia especial. Sabemos que você tem um sonho: ter uma cadeira motorizada para explorar o mundo. A comunidade abraçou esse sonho. Fizemos rifas, bazares, doações. Pais, alunos, professores, vizinhos, todos colaboraram. E hoje, graças a isso, queremos entregar a você uma parte de sua liberdade. — Ela abriu o envelope e tirou um documento. — Este é o pedido de compra da sua cadeira motorizada, e este — disse, apontando para o lado — é o nosso presente.
Um grupo de pais entrou empurrando uma cadeira motorizada nova. Azul, brilhante, com almofadas confortáveis, apoio para pés, cintos de segurança. Diego arregalou os olhos, colocou as mãos na boca. Olhou para mim, depois para Sombra, e então chorou. Lágrimas escorriam silenciosas. — “É minha?” — escreveu. — Sim — respondi, com a voz embargada. — É sua. — Ele passou as mãos pelo assento, pelo painel, pelo joystick. As crianças se aproximaram, mas respeitaram seu espaço. Sombra cheirou a cadeira com curiosidade, abanou o rabo. Olhou para Diego. Era como se perguntasse: “Vamos?” Lídia, com delicadeza, mostrou como ligar e desligar. O técnico da loja explicou as funções básicas. — Primeiro vamos praticar no pátio — sugeriu. Diego assentiu. Seus dedos tremiam, mas, com orientação, empurrou o joystick para frente. A cadeira se moveu lentamente. Ele riu. Moveu para trás. Riu mais. Virou à direita, à esquerda. Fazia pequenos círculos. As crianças aplaudiram. Clara chorava. — Você é livre — disse ela.
Nas semanas seguintes, Diego e sua cadeira formaram uma dupla inseparável. No primeiro passeio no bairro, Sombra caminhava ao seu lado, atento. Passei horas praticando, colocando obstáculos como cones, ensinando-o a parar, a virar. Foi lindo ver a adaptação. Sombra aprendia a velocidade da cadeira, adiantava-se um pouco, voltava. Diego sorria. Escreveu: “Ela é rápida!”. E: “Posso ir até a esquina sozinho?”. Combinamos regras: sempre avisar, sempre levar o celular, sempre ir por ruas planas. Gradualmente, ampliamos as distâncias. A cada conquista, ele anotava no caderno: “Hoje fui até a padaria. Incrível.” “Hoje mostrei a cadeira para Tia Helena. Ela chorou.” “Hoje fui ao parque com Sombra. Ele correu.”
Uma cadeira motorizada trouxe mudanças práticas e emocionais. Diego não precisava mais esperar que eu empurrasse; podia decidir o ritmo. Sombra acompanhava, confiante. Eu, que antes ficava ofegante ao subir a ladeira, agora caminhava ao lado, conversando. Percebi que meu papel mudou: de motor, tornei-me guia, observadora, companhia. Houve dias em que me peguei com saudades da proximidade física que a cadeira manual proporcionava. Mas a alegria de ver Diego ir e vir compensava qualquer nostalgia. Era como ver um filho andar de bicicleta sem rodinhas. Uma parte de mim queria segurar, mas outra sabia que ele precisava ir.
O sonho da cadeira motorizada também trouxe desafios. Havia dias em que a bateria acabava mais rápido por causa do frio; dias em que um pneu enchia demais; dias em que a cadeira fazia um barulho estranho. Tínhamos que aprender manutenção básica. Carlos, sempre prático, estudou, assistiu vídeos, aprendeu a trocar fusíveis. Uma vez, no meio do parque, a cadeira travou. Diego entrou em pânico. Sombra ficou inquieto. Respirei fundo, lembrei das lições do curso, mantive a calma. Liguei para o técnico, ajustamos um botão. Voltou. Cada pequena crise era uma lição de resiliência.
Outra mudança foi a percepção das pessoas na rua. Uma cadeira motorizada chama atenção. Alguns olhares eram de curiosidade; outros, de admiração; alguns, de pena. Diego percebeu. Escreveu: “Por que me olham?”. Expliquei que eram olhares de pessoas que não conheciam. Sugeri que sempre que alguém olhasse, ele sorrisse ou acenasse, se quisesse. Aos poucos, ele percebeu que o sorriso era poderoso. Sombra também percebia. Se alguém se aproximava demais sem perguntar, ele se posicionava. Era o protetor discreto. Juntos, enfrentavam a curiosidade alheia com dignidade.
Houve também a mudança na casa. Precisamos instalar rampas de acesso, arrumar o espaço da sala para acomodar a cadeira, colocar tomadas mais acessíveis para carregar a bateria. Foi investimento de tempo e dinheiro, mas cada ajuste nos lembrava da conquista. A rampa da garagem, antes usada para a cadeira manual, precisou ser alargada. A cozinha ganhou um espaço de estacionamento. A decoração da sala mudou: a cadeira motorizada era agora parte do cenário, e nunca me incomodou. Era como um troféu, um símbolo de liberdade conquistada.
A comunidade continuou envolvida. Lourdes e Bolt acompanhavam muitas vezes os passeios, e Bolt parecia admirar a tecnologia. Dona Helena se oferecia para carregar a bateria quando não estávamos. Lídia organizou uma “caminhada motorizada” para alunos com diferentes equipamentos. Clara fez um trabalho com os colegas de classe sobre acessibilidade e autonomia. Um garoto de outra turma, com paralisia cerebral, ganhou uma cadeira motorizada pouco depois, inspirado na história de Diego. E quando outra criança, Ana, quis andar na cadeira de Diego, ele a deixou, supervisionado, e escreveu: “Todos precisam sentir.” Foi emocionante.
O sonho da cadeira motorizada também mudou nossa visão de futuro. Antes, eu me questionava se Diego poderia ir à escola sozinho ou passear com amigos. Agora, imagino-o indo ao cinema com colegas, indo ao supermercado para comprar balas, indo à biblioteca para escolher livros. A independência que a cadeira proporciona abre caminhos. E, mais do que isso, mostra que a sociedade pode se adaptar. Rampas e calçadas acessíveis não são luxos; são direitos. Cada vez que Diego precisa desviar de um carro estacionado em cima da calçada, eu me encho de coragem para reivindicar, questionar, exigir. A cadeira é símbolo de algo maior: dignidade.
No final do ano, Diego escreveu uma redação para a escola com o tema “Meu maior sonho realizado”. Ele escreveu: “Eu queria andar sozinho. Agora eu posso. A cadeira tem luzes. Eu posso ir longe. Eu e Sombra. Eu sou feliz.” Quando li, chorei. Não porque a jornada acabou, mas porque a concretização de um sonho dá espaço a outros. O sonho da cadeira motorizada alimenta sonhos de viajar, de estudar, de trabalhar, de amar. A cadeira é ponto de partida, não destino.
Hoje, ao olhar para a cadeira estacionada na sala, às vezes lembro-me do medo inicial. Lembro-me de quando era apenas um pensamento. Lembro-me da primeira pesquisa e da sensação de não ser possível. Lembro-me da comunidade se unindo, das mãos costurando, assando, pintando para arrecadar dinheiro. Lembro-me do sorriso de Diego ao ligar o botão pela primeira vez. E lembro-me de Sombra, ao lado, como sempre, adaptando-se a cada mudança, protegendo-nos com amor. Sinto gratidão. E, mesmo sabendo que outros desafios virão, sei que, quando sonhamos juntos, temos mais chances de vencer.
O sonho da cadeira motorizada nos ensinou que sonhos são mais bonitos quando compartilhados. Que a comunidade pode transformar desejos em realidade. Que o amor se manifesta em ações, em doações, em palavras de incentivo. Que a tecnologia é uma aliada poderosa para a inclusão. E que, para Diego, a liberdade não tem preço. Ele sabe que não precisa pedalar; basta empurrar o joystick para ir ao encontro do mundo. E que, ao seu lado, sempre estará Sombra. Não porque a cadeira precise, mas porque Diego precisa. Porque liberdade compartilhada é ainda mais doce.
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