Um simples balão nas patas de Sombra desperta sorrisos e novos avanços em Diego, provando que a esperança pode flutuar.
Capítulo 76 - Um Cachorro Que Leva Balão
A manhã amanheceu com um céu límpido e um silêncio diferente em nossa casa. Ainda era cedo, o sol mal havia despontado no horizonte, e as cores suaves do amanhecer tomavam conta do quintal. As bexigas restantes da festa de aniversário balançavam preguiçosas no ar da varanda, lembrando-nos de que a alegria ainda habitava ali. Sombra, nosso pastor alemão de olhos atentos, deitou-se junto às bexigas como se fizesse parte da decoração, o focinho encostado num balão vermelho que escapara da fitinha e agora se apoiava na grama. No quarto ao lado, Diego dormia tranquilo, a respiração profunda marcando o ritmo da paz. Eu passei devagar pela porta, não querendo quebrar a magia daquela cena: a criança, o cão, a luz de esperança atravessando a janela.
Eram tantas as emoções recentes que me sentia num sonho acordada. Fazia poucos dias que festejamos o décimo aniversário de Diego com uma delicadeza inédita. O som do “parabéns” em tom baixo ainda ecoava em meus ouvidos, as palmas ritmadas reverberavam na alma. Cada sorriso da festa tinha ficado gravado em minha memória, especialmente o momento em que Diego sorriu com o balão azul na mão. Mas agora, olhando Sombra brincar suavemente com aquele balão vermelho, senti uma ideia nascer: e se prolongássemos a magia daquele objeto que flutua, leve, trazendo risos? Talvez uma brincadeira diferente pudesse trazer outra vitória, outro sorriso, outra palavra. Aproximei-me de Sombra, acariciei a sua cabeça e senti o calor de sua pele sob os pelos macios. “Vamos passear com isso?”, sussurrei, sem saber se ele entenderia. Mas ele levantou as orelhas e abanou o rabo, como se dissesse “sim, me leva”.
Decidi amarrar a fita do balão à coleira dele. Fiz um laço firme, mas não apertado, testando a resistência com cuidado. Enquanto amarrava, lembrei-me das técnicas que havia aprendido em um Curso de Adestrador de Cães que fiz meses antes, quando quis entender melhor como ensinar comandos simples e preservar a segurança de um animal tão sensível. Foi nesse curso que descobri que os cães podem associar objetos a emoções e que pequenas brincadeiras transformam-se em grandes lições. Ensinar Sombra a carregar um balão parecia trivial, mas era também uma forma de desafiá-lo e de fazê-lo participar ainda mais do universo sensorial de Diego. Pronto. Balão amarrado, cão curioso, coração ansioso. Abri a porta do quarto devagar, com Sombra atrás de mim, o balão vermelhinho balançando acima dele.
Diego acordou com o barulho suave da porta. Seus olhos, ainda pesados de sono, demoraram a entender a imagem à sua frente: um cachorro de tamanho considerável, com um balão amarrado à coleira, parado na porta como se tivesse uma missão. No primeiro instante, ele franziu a testa, surpreso; no segundo, seus lábios se curvaram num sorriso que iluminou o quarto. Os dedos finos se estenderam, pedindo para tocar o fio. Sombra avançou um passo, abaixou a cabeça e encostou o focinho na mão do menino. O balão desceu um pouco, e Diego o segurou entre os dedos. Foi como se dois mundos — o da fantasia e o da realidade — se encontrassem naquele ponto exato. Vendo a cena, senti as lágrimas se acumularem nos olhos. Cada gesto da vida do meu filho era como se fosse uma primeira vez.
— Olha, filho, o Sombra tem um presente pra você — murmurei, ajoelhando-me ao lado dele. Diego olhou pra mim e depois pro balão. Lembrei-me de que ele tinha tentado dizer “balão” alguma vez antes, mas a palavra escapara em sons difusos. Apoiei a mão em suas costas, transmitindo coragem. — Balão — repeti, devagar. Diego moveu os lábios, puxou o ar, e emitiu um som rouco: “Bá…”. Sombra levantou as orelhas, atencioso. — Lão… — completou meu menino, com esforço, o rosto ficando vermelho do esforço. Eu aplaudi baixinho, com lágrimas descendo. Era apenas uma palavra, mas dentro dela moravam todas as letras do alfabeto do nosso amor. A palavra “balão” flutuou no ar como o objeto que a inspirava.
Ao longo da manhã, trabalhamos essa nova brincadeira. Sombra caminhava pela casa com o balão preso à coleira, e Diego ria cada vez que o via passar pela porta. Às vezes, Sombra fazia um desfile no corredor, com passos lentos, mostrando ao menino que o balão se movia com ele, para onde quer que fosse, e que estava tudo bem. Em outros momentos, Diego puxava a fita delicadamente, observando o balão subir e descer, fascinado pela leveza. No quintal, a luz do sol refletia no plástico vermelho, projetando manchas rosadas no chão. As sombras dançavam, e Diego tentava tocá-las com os dedos, uma espécie de teatro silencioso.
Decidimos então levar a brincadeira para fora, para ver como o mundo reagiria a um cachorro com balão e a uma criança silenciosa abrindo um sorriso. Arrumei Diego em sua cadeira de rodas, coloquei-lhe um chapéu para protegê-lo do sol e amarrei um segundo balão azul ao braço da cadeira, equilibrando as cores. Sombra caminhava ao lado, concentrado, como se soubesse que agora a missão era ser vitrine de carinho. Saímos pela porta da frente e seguimos pela calçada. As bexigas balançavam ao ritmo do vento, e o riso de Diego escapava como um sussurro. Passamos pela casa de Dona Teresa, a vizinha que sempre observa tudo. Ela sorriu, enxugou as mãos no avental e gritou baixinho: “Que coisa linda!”. Mais adiante, duas crianças apontaram e correram em nossa direção. Seus olhos brilharam ao ver o balão amarrado ao cachorro.
— Oi, Sombra! — disseram, estendendo as mãos. — O que ele está carregando?
— É um balão — respondeu Carlos, meu marido, sorrindo. — O Sombra quer mostrar para o Diego como é divertido.
As crianças riram e deram tapinhas leves no balão, que subia e descia. Diego observava tudo e batia palmas devagar. Em suas palmas, ouvia-se um hino silencioso. Não demorou para outras pessoas na rua se aproximarem, curiosas. Um rapaz tirou o celular do bolso e tirou uma foto. Uma senhora perguntou se aquilo fazia parte de alguma campanha. Eu respondi que era apenas uma brincadeira de amor. Ela chorou e contou que também tinha um neto especial. Em poucos metros, mais abraços, mais sorrisos, mais histórias. Parecia que o balão vermelho era uma antena que captava e devolvia carinho.
Sombra se comportava com maestria, fruto do treinamento cuidadoso e amoroso que tivemos. Não se assustou com os carros passando, nem com as vozes mais altas. Seu olhar estava sempre em Diego, atento aos sinais de cansaço ou ansiedade. Se o barulho aumentava, ele se aproximava mais da cadeira, roçando o flanco na perna do menino. Diego respondia com um toque no pelo, e os dois se equilibravam de novo. Notando esse ajuste fino entre os dois, percebi que aquela brincadeira era, na verdade, uma aula de sincronia. Não era apenas um cachorro levando um balão; era um amigo levando esperança e devolvendo segurança.
A certa altura, paramos em uma pequena praça com algumas árvores e um banco de cimento. Amarramos os balões nos galhos mais baixos e nos sentamos. Diego olhava para cima, acompanhando os balões contra o céu azul. Sombra sentou-se ao lado, as orelhas mexendo de acordo com a brisa. Eu tirei do bolso algumas bolachinhas de aveia que tinha preparado na noite anterior com receitas do curso de alimentação natural. Entreguei uma a Diego e outra a Sombra. Eles comeram em silêncio, saboreando cada pedacinho. Uma senhora se aproximou e perguntou se poderia tirar uma foto; eu disse que sim, mas com cuidado para não assustar. Quando ela se abaixou para ajustar a câmera, Diego apontou para o balão e emitiu um som, uma onomatopeia que só nós entendemos. Sombra olhou e entendeu também. A foto registrou esse exato momento: o dedo apontando, o olhar compartilhado, o balão como cenário.
No caminho de volta, o vento ficou mais forte, e o balão vermelho começou a ser puxado com força. Eu temi que ele escapasse, mas Sombra manteve o passo firme. De repente, um carro passou rápido demais, levantando uma folha seca que assustou o cão. Ele recuou um passo, e o balão quase tocou o asfalto. Diego soltou um som, não sei se de medo ou de alerta. Meu coração saltou. Mas então, como se o próprio Sombra soubesse que precisava controlar a situação, ele parou, olhou para mim e, com calma, deixou o balão se ajeitar no ar. Peguei a fita e segurei também. “Tudo bem, amigo”, sussurrei. “Estamos juntos”. O susto nos ensinou que, mesmo nas brincadeiras mais leves, a vida exige cuidado. Olhei para cima e vi que o sol começava a se esconder. Era hora de voltar.
Chegando em casa, Diego quis guardar o balão em seu quarto. Desamarrei a fita da coleira de Sombra e amarrei no puxador do armário, de modo que o balão ficasse ao alcance de sua mão. Sombra deitou-se na porta, como um guardião. “Boa noite, balão”, escrevi no tablet para Diego ler. Ele riu e escreveu: “Boa noite, amigo”, apontando para Sombra. Entendi que o balão agora fazia parte da família, ao menos até murchar. E, enquanto murchava ao longo da semana, trouxe consigo a lembrança de um dia mágico e de uma palavra nova.
Nos dias que se seguiram, percebi que Diego queria sempre o balão por perto. Ele o puxava na cadeira, deixava-o sobre a cama enquanto lia livros de figuras, e desenhava círculos no tablet como se fossem balões voando. Até Sombra parecia sentir falta do colorido quando o balão vermelho finalmente estourou numa manhã. Diego chorou baixinho ao ver o plástico encolhido no chão. Corri até a gaveta onde guardava materiais da festa e peguei outro balão, desta vez verde. Assopramos juntos — eu, Diego e, nos intervalos, até Sombra tentava enfiar o focinho para ajudar. Rimos de ver as bochechas do cachorro inflarem sem sucesso. Ao final, tínhamos um balão novo, e a brincadeira continuou. Era como se cada balão trouxesse uma renovação.
Mais tarde, lembrei-me de como tudo começou: com um gesto espontâneo de Sombra brincando com um balão esquecido. Pensei em quantas oportunidades perdemos de transformar algo pequeno em terapia. À noite, sentei-me com Carlos e conversamos sobre novas atividades que poderíamos incluir na rotina de Diego. Pesquisamos jogos sensoriais com luzes, cheiros, sons. Achei um artigo interessante sobre a importância de brinquedos flutuantes para crianças que precisam trabalhar coordenação motora. E, claro, voltei a assistir a algumas aulas do curso de adestramento, buscando novas ideias para incluir Sombra nas terapias, sempre respeitando seus limites. Sentia que, quanto mais aprendíamos, mais portas se abriam para nós.
Numa dessas pesquisas, descobri que havia pessoas em outras cidades fazendo caminhadas com balões para chamar atenção para a inclusão. Pensei em propor algo assim na escola: um dia em que todas as crianças amarrariam balões às mochilas, para lembrar que cada ser humano carrega seus próprios sonhos, medos e esperanças. Escrevi a ideia no grupo dos pais, e a resposta foi positiva. Marcamos um encontro para dali a duas semanas. As crianças se animaram com a proposta de decorar os balões com desenhos e palavras positivas. Diego escreveu “Amo” em seu balão azul. Outras crianças desenharam corações, estrelas e até nomes de amigos. No dia do evento, o pátio virou um céu colorido. Sombra, mais uma vez, carregou o seu balão vermelho, e todos aplaudiram.
Durante esse percurso, percebi que o balão tinha se tornado símbolo de mais do que diversão. Ele representava um elo entre mundos, um instrumento de conexão. Ele atraía curiosidade e dava coragem a Diego para se expressar. Ele fazia Sombra sentir-se importante, e as pessoas ao redor sentiram o poder de um gesto simples. Foi com um balão que meu filho tentou pronunciar uma palavra nova, que criamos uma caminhada de inclusão, que chorei e ri ao mesmo tempo. E foi com um balão que senti que a vida nos presenteava com poesia.
No último dia daquela semana de balões, estávamos todos no quintal observando o pôr do sol. As bexigas balançavam, tingidas de laranja. O vento estava calmo, quase uma carícia. Diego segurava firme a fita do seu balão azul com uma mão e acariciava Sombra com a outra. Sua expressão era de uma paz que parecia vir de outro mundo. Aproximou a boca do ouvido do cão e sussurrou: “Meu balão”. Não era perfeito, não era alto, mas era audível. E, como sempre, Sombra respondeu com um latido suave, como se fosse uma resposta. Naquele momento, senti que a pergunta “quando ele virou herói” tinha uma nova resposta: quando aprendeu a transformar o simples em extraordinário e a carregar com leveza o que para muitos poderia pesar.
Entrei em casa para buscar o celular e registrar aquele momento. Quando voltei, vi que o balão de Diego havia se soltado e subia lentamente, flutuando na direção das nuvens tingidas de vermelho. Fiquei com medo de que ele se frustrasse, mas, para minha surpresa, Diego apenas o acompanhou com os olhos e disse: “Vai”. Em sua voz havia soltura. Ele entendeu que alguns balões precisam ir. E eu entendi que, se existe um herói aqui, é esse menino que sabe a hora de segurar e a hora de soltar. Sombra observava tudo, a cabeça inclinada para o céu, como se se despedisse também. O balão sumiu, e nós ficamos em silêncio, ouvindo o som suave do vento e da vida.
No fim daquele dia, depois de colocar Diego para dormir, voltei ao quintal com Sombra. Ele se deitou ao meu lado, e juntos ficamos olhando para a moldura de estrelas que surgia no céu. Passei a mão pelo pelo dele, lembrando de cada balão, cada palavra, cada olhar. E então sussurrei: “Obrigada por carregar nossos balões com tanta leveza, meu amigo”. Ele levantou a cabeça, lambeu minha mão e suspirou. Eu entendi. Ele também agradecia. Porque, no fundo, não é o balão que importa, mas o que aprendemos a carregar com ele: amor, esperança, coragem. A lição de um cachorro que leva balão é simples e, ao mesmo tempo, profunda: os maiores voos começam com um gesto pequeno, e a nossa missão é amarrar o laço com delicadeza e soltar quando for hora.
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