Na feira da escola, Diego e Sombra emocionam colegas com a apresentação do seu mundo, provando que inclusão é feita de amor e coragem.
Capítulo 80 - A Apresentação na Feira da Escola
A primavera chegou pintando a cidade de cores vivas, e com ela veio a tão aguardada Feira da Escola, um evento que agitava os corredores meses antes de acontecer. Todos os anos, alunos de diferentes turmas montavam projetos, maquetes, stands de ciência, arte e literatura para expor à comunidade. Era um momento de orgulho para os pais, de ansiedade para os alunos e de trabalho dobrado para os professores. Naquele ano, porém, a feira teria um sentido especial para nossa família: pela primeira vez, Diego e Sombra participariam como protagonistas de uma apresentação.
Tudo começou quando Lídia, a professora de Diego, nos chamou numa tarde depois da aula. Ela estava animada, com um brilho nos olhos. — Este ano, quisemos reservar um espaço na feira para falar sobre inclusão — explicou. — Queremos mostrar aos visitantes como a comunicação alternativa funciona, como a terapia assistida por animais pode mudar vidas. E pensamos: quem melhor para demonstrar isso do que Diego e Sombra? — Meu coração bateu forte. Sempre desejei que as pessoas entendessem melhor a nossa jornada, mas a ideia de expor Diego numa feira me deixava receosa. Lídia percebeu. — Não precisa ser nada complicado — tranquilizou. — Vocês podem trazer o tablet, o caderno de pictogramas, o balão, e mostrar ao vivo, se ele se sentir à vontade. E, claro, o Sombra vai estar ao lado. — Olhei para Diego. Ele estava brincando com os dedos, despretensioso. — O que você acha? — perguntei. Ele encarou Lídia, sorriu e piscou devagar. Nosso sinal silencioso de “sim”.
Nos dias que se seguiram, a organização tomou conta de nós. Preparamos o que levaríamos: uma série de fotos das primeiras conquistas de Diego, o papel onde ele havia escrito o próprio nome, os cartões com as palavras que mais usava. Montamos um painel com a frase “Comunicação que Acolhe” e colamos figuras e palavras ao redor. Sombra observava tudo atento, levantando as orelhas sempre que pegávamos o balão. Para garantir que a apresentação com ele saísse bem, voltei a assistir algumas aulas do Curso de Adestrador de Cães que tanto me ajudara. Aprendi dicas de como manter Sombra tranquilo em ambientes cheios, como ler os sinais de estresse e ajustar o tempo de exposição. Também achei orientações de como ensinar novos comandos que poderiam brilhar na feira, como ficar sentado sem sair do lugar, deitar em sinal de calma e aproximar-se de crianças com gentileza. Sombra parecia aprender com vontade. Era como se ele soubesse que estaria no palco mais uma vez.
Na véspera da feira, a escola estava em ebulição. Pais carregavam caixas, crianças se empenhavam em pintar cartazes, e professores davam orientações de última hora. Entregamos nosso material e nos dirigimos ao espaço designado. Ficaríamos ao lado da sala de arte, onde exposições com cores vibrantes atraíam atenção. Achei bom: muitas pessoas passariam por ali. Instalei o painel e arrumei os objetos cuidadosamente. Coloquei o tablet numa mesa, ao lado de um caderno de apoio, e prendi o balão vermelho na coleira de Sombra. Ele deitou-se, observando o vai e vem, sentindo com o focinho o cheiro de tinta, cola, lã, algodão-doce vindo de alguma barraca de comida.
Na manhã do evento, acordei com o coração apertado. E se Diego se sentisse sobrecarregado? E se o som da feira o distraísse? Preparámos tudo com calma: vesti Diego com uma camiseta confortável e uma calça que permitia movimentos leves, calcei seus tênis favoritos, e penteei seus cabelos delicadamente. Expliquei o que faríamos, passo a passo, usando pictogramas. Ele balançava a cabeça a cada etapa, mostrando que entendia. Sombra, ao lado, abanava o rabo, pronto para acompanhar. Carlos, meu marido, também se preparou para nos ajudar a segurar o tablet, a conversar com as pessoas. Pela primeira vez, nossa família inteira seria parte de um espetáculo público. Respirei fundo e murmurei uma oração silenciosa.
Chegamos à escola antes do horário de abertura. As luzes eram acesas, e os expositores ainda colocavam detalhes em seus stands. Aproveitei o ambiente vazio para caminhar com Diego por entre as bancas, para que ele se familiarizasse com os corredores. Mostrei-lhe a porta de emergência, para o caso de precisarmos sair rapidamente, e combinamos um sinal visual que indicava que ele queria ir embora. Sombra caminhava devagar, cheirando o chão, reconhecendo o território. Quando voltamos ao nosso espaço, Lídia nos esperava com um sorriso. — Vamos começar devagar — disse ela. — Eu vou recepcionar os visitantes, apresentar vocês, e vocês decidem quando é a hora de mostrar algo. Está tudo nas suas mãos. — Assenti, agradecida pela sensibilidade dela.
De repente, o portão principal se abriu, e uma avalanche de vozes, risadas e passos invadiu o pátio. A feira começava. No início, poucos se aproximaram. As pessoas davam uma olhada geral, observando de longe o balão flutuando na coleira de um cão. Mas bastou o primeiro pai curioso se aproximar, perguntar o que estávamos expondo, para que um círculo se formasse ao redor de nós. Lídia fez uma introdução breve, contando que ali estava um menino que não falava como os outros, mas tinha encontrado formas alternativas de se comunicar. Explicou que seu amigo de quatro patas era parte fundamental desse processo. Os olhares se voltaram para Diego, que segurava o tablet e mantinha Sombra com a mão esquerda, e para mim, ali, abrindo nosso mundo para desconhecidos.
— Pode começar quando quiser — disse Lídia. — Mostre uma palavra. — Diego respirou e, com a caneta digital, escreveu “Olá”. As pessoas se entreolharam, admiradas. — Esta é a nossa forma de cumprimentar — expliquei. — Quando Diego queria nos chamar, tentava emitir sons, mas era difícil. Hoje, ele escreve e fala com os dedos. — Todos sorriram. Lídia então pediu para Diego mostrar sua palavra favorita. Ele escreveu “Balão”. Houve risos e murmúrios: alguns visitantes haviam nos visto no jornal. — Quer mostrar o balão real? — perguntei, e ele balançou a cabeça. Foi a deixa. Sombra, que até então estava deitado, levantou-se e, ao meu sinal, deu um passo à frente, permitindo que todos vissem o balão vermelho preso à sua coleira. — Sombra pode apresentar — sugeri. Ele se aproximou, abaixou a cabeça, permitindo que Diego segurasse a fita. — Foi assim que Diego disse “balão” pela primeira vez — contei. O grupo se derreteu.
As perguntas começaram a surgir, tímidas no início. — Como vocês descobriram que ele queria um cachorro? — questionou uma mãe. Contei sobre a intuição, sobre a pesquisa, sobre conversas com terapeutas. Expliquei que, apesar de não existirem milagres, os cães podem ser mediadores de emoções. Outra pessoa perguntou se tínhamos receio de expor nosso filho. Respondi que, sim, tínhamos medo, mas que decidimos mostrar nossa história para inspirar. — E você não tem medo de Sombra machucar alguém? — um homem perguntou, apontando para as crianças por perto. Sorri e assegurei que Sombra era muito bem treinado, que participara de um curso específico de terapia assistida, que seguíamos protocolos rígidos, e que sua presença era sempre monitorada. — Ele entende quando deve se afastar — garanto. — Assim como nós, ele tem limites.
Crianças se aproximavam com curiosidade, tocavam o balão com delicadeza, faziam carinho em Sombra. Diego observava tudo, às vezes rindo, às vezes calado. Em determinado momento, uma garotinha com síndrome de Down aproximou-se e ficou ao lado dele, olhando para a tela. — Posso escrever também? — perguntou timidamente. — Claro — respondi, oferecendo a caneta. Ela escreveu “Amigo”. Diego sorriu. Em seguida, ele escreveu “Sim” e piscou. As pessoas ao redor ficaram emocionadas. Lídia usou aquele momento para falar sobre a importância de linguagem alternativa na inclusão. — Todos temos o direito de nos expressar — dizia. — Às vezes, precisamos de ferramentas diferentes. — Eu via nos olhos das pessoas as luzes se acendendo.
Os minutos se transformaram em horas. A fila de curiosos cresceu e diminuiu ao longo do dia. Uma mãe saiu chorando e me abraçou. — Meu filho nunca falou. Eu sempre achei que fosse porque ele não quisesse. Agora entendi que preciso aprender outra língua. Obrigada. — Fiquei emocionada. Um pai trouxe o próprio filho, que também tinha autismo, e pediu para Diego mostrar como pedia água com o tablet. Diego escreveu “Água” e apontou para a garrafa. O menino observou atento, depois pegou o dedo do pai e tentou imitar. Era como se uma corrente de aprendizados se formasse ali, entre famílias. Sombra, ao meu lado, continuava sereno, esbanjando doçura, aceitando os carinhos, as fotos, os elogios. Quando via que Diego começava a ficar mais quieto ou que as perguntas se acumulavam demais, ele encostava o focinho em mim, sinal de que precisávamos de uma pausa. Nessas horas, eu agradecia as pessoas e recolhia Diego e Sombra para um canto. As pausas faziam parte da rotina.
No meio da tarde, aconteceu algo inesperado. A diretora da escola pediu que fizéssemos uma apresentação no palco principal. Eu gelei. A plateia era grande, barulhenta, com dezenas de alunos e pais. Lídia me assegurou que só faríamos se estivéssemos à vontade. Considerei os prós e contras. Diego estava cansado, mas animado. — O que você acha? — perguntei a ele, apontando para o palco. Ele apontou para o tablet e escreveu “Quero”. Suspirei. Fomos. No palco, Lídia apresentou-nos brevemente e explicou que mostraríamos como Diego escrevia. Entreguei o tablet nas mãos dele, coloquei Sombra ao lado. A plateia silenciou. Diego escrevia devagar, as letras tortas, o dedo trêmulo. Eu podia sentir o coração dele batendo rápido. Ele escreveu “Olá. Eu sou o Diego”. A plateia explodiu em aplausos. Algumas pessoas choravam. — Meu filho se apresentou — pensei. — Meu filho se apresentou para uma plateia e se apresentou por escrito. — Foi como ver o impossível materializar-se.
Ao final do dia, exaustos, recolhemos nossos materiais. As luzes da feira começaram a se apagar, e o burburinho deu lugar ao arrastado de cadeiras. Chegamos em casa com a sensação de ter vivido um dia histórico. Diego adormeceu no carro, a mão ainda segurando a fita do balão. Sombra, ao chegar, deitou-se no corredor e dormiu profundamente. Carlos e eu nos sentamos na sala, os olhos marejados. Eu peguei no colo o caderno onde anotara as perguntas do público, as frases de apoio, as idéias que surgiram. Senti uma mistura de cansaço e gratidão. — Valeu a pena? — Carlos perguntou. — Valeu cada minuto — respondi. — Se uma criança falou hoje porque viu Diego, se uma mãe decidiu aprender a língua do filho, nosso coração está em festa.
Nos dias seguintes, ainda colhemos frutos da feira. Uma professora nos convidou para levar nosso material a outras turmas. Uma mãe me escreveu dizendo que o filho, ao ver Diego escrever no tablet, pediu um para tentar. Um adolescente que nunca tinha se aproximado de Diego enviou um desenho de Sombra com balão, dizendo que agora entendia porque ele era especial. Recebemos recados de amigos e desconhecidos. — Vocês nos ensinaram que comunicação não se limita à voz — diziam. E era isso. Foi a apresentação de uma feira, mas significou muito mais: mostrou que a escola pode ser um espaço de encontros reais, onde as diferenças são ponte, não muro.
E sempre que penso naquele dia, recordo a cena do palco. Vejo as letras tortas ganhando vida, vejo o balão vermelho se mexendo discretamente, sinto a mão de Diego tremendo e a minha segurando a sua. Sinto o olhar atento de Sombra, pronto para intervir se algo fosse demais. Sinto o calor das palmas, o barulho dos pés no chão. Sinto a alma da nossa família dizendo em uníssono: nós conseguimos. Aprendi, naquele dia, que a coragem se manifesta nos gestos aparentemente pequenos: subir em um palco, escrever o próprio nome, amarrar um balão a uma coleira. E aprendi que a beleza da inclusão está nisso: dar espaço para que cada um brilhe à sua maneira.
O tema “A Apresentação na Feira da Escola” não é apenas sobre uma apresentação. É sobre a jornada que nos levou até lá. É sobre a força de um menino que encontrou a sua voz, mesmo sem falar. É sobre um cão que aprendeu a ser ponte. É sobre uma mãe que enfrentou seus medos. E é, principalmente, sobre a capacidade de uma comunidade de aprender e crescer. Porque, naquele dia, a escola inteira se apresentou. A escola toda mostrou que, quando nos abrimos para o diferente, todos saem maiores. E, quando fechamos os olhos à noite e nos lembramos de cada rosto emocionado, sabemos que não há prêmio melhor do que esse.
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