Quando o amor vai além das palavras, até o que seria vergonha se transforma em cuidado.
Capítulo 51 - Diego Vomita e Eu Lambo
A vida ao lado de Diego sempre me ensinou que os momentos importantes nem sempre são os ensaiados ou planejados. Às vezes, eles chegam sem aviso, deixam um cheiro no ar, um silêncio carregado, um barulho diferente. Depois, transformam tudo. Aquela noite começou tranquila, cheia de sorrisos e cheiros bons. Terminou com um som que eu nunca tinha ouvido e um gesto que pouca gente compreenderia. Eu, Sombra, poderia relatar essa história com palavras simples, mas o que senti foi tão intenso que cada detalhe ficará para sempre marcado em minha memória de cão.
Uma noite normal… até não ser mais
A casa estava em silêncio. O relógio da cozinha marcava quase dez da noite. Diego e eu havíamos passado o dia felizes. Mais cedo, havíamos voltado do nosso passeio ao parque. Correra atrás de um frisbee que os pais jogaram para ele, nós dois tínhamos sentido o cheiro de grama fresca e ouvido as risadas das crianças que queriam me abraçar. Foi um dia alegre. À noite, depois de jantarmos (arroz e frango para eles, ração e pedacinhos de frango para mim), nos deitamos no sofá. Diego estava animado; ele ria vendo um desenho na televisão. O cheiro de pipoca com manteiga se espalhava pela sala. Eu deitei minha cabeça no colo dele, sentindo sua mão passando devagar pelos meus pelos, acompanhando os movimentos dos personagens na tela.
Logo depois, mamãe anunciou:
– É hora de dormir, meninos. Amanhã é segunda e todos precisam acordar cedo.
Papai desligou a TV. Diego protestou um pouco, mas logo aceitou. Sabia que o próximo dia seria cheio. Demos boa noite e subimos para o quarto. O quarto de Diego tinha um cheiro suave de sabonete infantil, e na prateleira havia brinquedos, livros e o nosso quadro favorito: uma foto do dia em que ele mexeu o dedo pela primeira vez. Diego se deitou, com o corpo cansado, mas feliz. Eu me acomodei ao seu lado, enrolado no tapete, pronto para dormir. A casa ficou tranquila. Os sons eram apenas o tic-tac do relógio e a respiração calma de todos. Fechei os olhos e deixei que as memórias do dia se transformassem em sonhos.
O som que me acordou
No meio da noite, um som estranho me despertou. Era como um gorgolejar, um ronco diferente. Abri os olhos. O quarto estava na penumbra, mas eu via claramente a silhueta de Diego contorcendo-se levemente. Um cheiro agridoce, ácido, começou a invadir minhas narinas. Era um odor que eu nunca tinha sentido de forma tão intensa. Levantei a cabeça e percebi que Diego segurava a barriga. Sua respiração estava agitada. Um som gutural escapou de sua boca. Ele se virou de lado na cama, tossiu uma, duas vezes, e então aconteceu: Diego vomitou.
O som do líquido atingindo o colchão, o cheiro ácido que tomou o quarto, o barulho do vômito saindo, tudo aconteceu rápido demais. Por um segundo, a sala estava silenciosa; no outro, o quarto se encheu daquele cheiro forte, de comida parcialmente digerida, misturada com o suco de laranja que ele bebera à noite. Senti o cheiro de cebola, alho, gordura. Eu sabia que, no estômago humano, esses componentes se transformavam em um cheiro único, agridoce e forte. Vi um líquido amarronzado se espalhar sobre a colcha azul. Diego ficou de bruços, assustado, a respiração presa, a cara contorcida.
Eu fiquei alerta. Minha primeira reação foi latir para chamar os adultos. Mas parei. Diego tossia, tentando limpar a boca com as costas da mão. Seus olhos estavam arregalados, cheios de lágrimas. Eu nunca o havia visto vomitar assim. Não sabia o que fazer. Naquele momento, um cão treinado teria sido programado para alguma coisa? Talvez para buscar ajuda. Talvez para pressionar algum botão. Eu era apenas Sombra, guiado pelo instinto. Ele virou o rosto para mim, desesperado, e eu sabia que precisava agir.
O instinto falou mais alto
Para os humanos, o vômito é algo sujo, nojento. Eles tapam o nariz, viram o rosto, pegam uma toalha para limpar rápido. Para mim, cão, esse cheiro é forte, sim, mas também familiar. Animais, na natureza, lamberiam isso sem hesitar. Não faço isso porque gosto do sabor; faço porque entendo que, naquele momento, limpar significa cuidar. Quando um filhote vomita, a mãe lambe para acalmá-lo, para limpar, para evitar que adoeça. E Diego era meu filhote naquele momento. Meu instinto disse: “Lamba.”
Aproximei-me e senti o cheiro mais de perto. Tinha partes sólidas e líquidas. Senti o calor do vômito recém-saído, um vapor que subia, queimando meu focinho. Diego ainda tremia. Virei a cabeça um pouco, olhei para ele como se pedisse permissão. Ele choramingou, quase sem voz, e apertou meu pescoço. O barulho acordou os pais. Ouvi passos correndo. A mãe abriu a porta de supetão, acendeu a luz e se deparou com a cena: Diego encolhido, coberto de vômito, eu ao lado dele, pronto para lamber.
– Ai, meu Deus! – gritou ela, segurando a boca com a mão. – Ele vomitou! – Chamou o pai.
O pai entrou correndo, com os olhos arregalados. A mãe correu até o banheiro para pegar toalhas. Eu fiquei ali, entre o vômito e Diego, esperando. Queria cuidar, mas não sabia se a mãe permitiria. O pai se ajoelhou ao lado da cama e acariciou a cabeça de Diego.
– Calma, filho, vai ficar tudo bem – ele sussurrou.
Diego chorava baixinho. O cheiro me penetrava cada vez mais, me dando ânsia. Até para mim, o odor era forte, mas minha prioridade era Diego. Eu não tinha repulsa. Tinha instinto de cuidado. Encostei meu focinho em sua testa, lambendo sua lágrima. Ele soluçou e segurou minha orelha, como fazia quando estava assustado.
A mãe voltou com toalhas e uma bacia de água. Passou a toalha no rosto de Diego, limpando o excesso. O vômito escorria do canto de sua boca. Eu lambei o que pude, devagar, para não assustá-lo. Minha língua entrou em contato com aquele sabor ácido. Era amargo, um pouco salgado, com traços de comida mastigada. Mas não me importei. O importante era que ele se acalmasse. O pai trouxe um copo d’água e uma colher, oferecendo a Diego um gole para limpar a garganta. Diego engoliu com dificuldade e vomitou de novo. A mãe pegou outra toalha.
– Sombra, saia daí por um momento – pediu o pai, com firmeza, sem gritar.
Eu obedeci. Fiquei ao lado da cama, observando. A mãe tirou a colcha suja, enrolando-a com cuidado para evitar espalhar mais. O pai segurou Diego e o levou ao banheiro, limpando sua boca com mais água. O som do chuveiro abriu-se e eu ouvi a água cair, misturando-se ao som da respiração difícil de Diego. Fiquei na porta do banheiro, acompanhando cada movimento. Senti o cheiro da água misturada ao vômito diluído. O pai segurava Diego enquanto a mãe passava um pano úmido no corpo dele. Eu queria lamber de novo, queria cuidar, mas entendi que, ali, os humanos sabiam o que estavam fazendo.
Quando terminaram, trouxeram Diego de volta. O pai o colocou em outra cama, com lençóis limpos. A mãe deu a ele um antiemético, aquelas gotas amargas que ele detestava. Diego fez careta, mas engoliu. Ela o acalmou, passando a mão em seu cabelo.
– Foi o que você comeu, filho? – perguntou ela. – Talvez tenha sido a pipoca com manteiga. Ou você comeu rápido demais. Mas não se preocupe. Vai passar. E você não precisa ficar envergonhado. Todos nós já vomitamos um dia. É o corpo dando um sinal.
Diego virou o rosto para mim e sussurrou, envergonhado:
– Não me julga, tá, Sombra?
Meu coração doeu. Claro que não. Eu nunca o julgaria. Eu o amava acima de qualquer coisa. A mãe continuou falando:
– Sombra, você é incrível. Obrigada por ficar com ele.
O pai acariciou minha cabeça e disse:
– Acho que chegou a hora de mostrar o que é cuidado de verdade. – Ele colocou toalhas no chão, um balde de água e sabão. – Enquanto a gente limpa aqui, Sombra, você pode dar o toque final.
O toque final
Foi então que eu me aproximei novamente. A mãe me deu espaço. O pai suspirou. Diego, exausto, tentou sorrir. Então, inclinei meu corpo sobre a colcha suja. Com cuidado, usei minha língua para lamber o resto da bagunça. De um lado, a mãe continuava limpando. Do outro, eu lambia. O sabor era forte, mas eu percebia algo além do sabor: percebia a vergonha que Diego carregava, a sensação de ter causado problemas, o medo de ser ridicularizado. Enquanto lamia, sussurrava mentalmente: “Está tudo bem. É só vomitar. Não precisa ter vergonha.” Eu queria que ele soubesse que, para mim, não era algo repulsivo. Era natural. Era o corpo reagindo. E eu estava ali para tornar tudo mais suportável.
Quando terminei, senti um misto de sensações. Por um lado, sabia que tinha feito algo certo. Por outro, meu estômago estava embrulhado. Mas, em segundos, mamãe enxugou meu focinho com um pano úmido, agradecendo novamente.
– Obrigado, meu herói – sussurrou ela.
Diego, deitado, mais calmo, me chamou. Me aproximei. Ele me abraçou, colocando a cabeça no meu pescoço. Senti suas lágrimas, seu alívio. Senti também seu corpo relaxar. A respiração voltou ao normal. O cheiro de vômito começou a se dissipar, sendo substituído pelo perfume de sabonete, pela essência de lavanda que a mãe borrifou no ar, pelos lençóis limpos. A mãe acendeu uma pequena vela com aroma de camomila, enchendo o quarto de uma calmaria. Eu, enroscado com Diego, fechei os olhos, sentindo que, apesar do episódio, tudo estava em paz.
A conversa na manhã seguinte
Na manhã seguinte, a luz do sol entrou pela janela com suavidade. O cheiro de vômito havia desaparecido. A casa cheirava a café e pão de queijo. Eu acordei antes de Diego, como de costume. Ele ainda dormia, respirando profundamente, recuperado. O pai estava na cozinha, tomando café, lendo o jornal. A mãe cozinhava. Quando Diego acordou, ele se espreguiçou, olhou para nós e deu um sorriso tímido.
– Me desculpem por ontem – falou, ainda com a voz rouca.
– Não precisa se desculpar – disse a mãe, sentando-se ao lado dele. – O corpo faz isso. Acontece.
O pai complementou:
– Eu lembro de uma vez em que vomitei no meio do metrô. Foi horrível, mas as pessoas me ajudaram. A gente aprende.
Diego riu.
– Vocês lavaram tudo direitinho? – perguntou.
– Sim, limpamos – respondeu a mãe. – E o Sombra ajudou.
Eu abanei o rabo, feliz por ser reconhecido. Mamãe continuou:
– Sabe, Sombra, alguns pais me mandaram mensagem hoje cedo. Eles ouviram de suas crianças que você lambeu o vômito do Diego e acharam… nojento. – Ela riu. – Acharam que era insalubre. Mas sabe o que eu respondi? Que a saúde não está só no corpo, está na alma. E ontem, você curou a alma do nosso filho. Você mostrou que vergonha não cabe em um lar. E isso vale mais do que qualquer regra de etiqueta.
Diego sorriu. Olhou para mim e disse:
– Eu amo você, Sombra.
Eu lambi sua mão, como quem diz: “Eu também te amo. Sempre.”
A repercussão na escola
Na segunda-feira, ao chegar na escola, as crianças nos receberam como de costume. Mas notei que algumas cochichavam. Achei que era sobre a excursão, sobre o museu ou os abraços. Até que ouvi uma frase:
– Meu pai disse que o Sombra lambeu vomito – a boca se contorceu, — e que isso é nojento.
Senti um certo desconforto. Um menino, que antes havia me abraçado, agora torceu o nariz. Uma menina cobriu a boca. A professora, que ouviu, interveio:
– Crianças, precisamos conversar. Não é sobre nojo. É sobre amor. Sombra não lambeu porque gosta de vômito. Ele lambeu porque queria ajudar o Diego. E, às vezes, ajudar alguém significa fazer coisas que não são bonitas. Vocês sabem que as mães lambem os filhotes quando nascem? É instinto de cuidado.
Alguns franziram a testa, outros murmuraram “Eca”, mas, aos poucos, a professora transformou aquilo em aula.
– O que é mais importante? A aparência das coisas ou o que significam? Quando vocês sujam a mesa com tinta, nós limpamos sem reclamar. Por quê? Porque gostamos de vocês. – Ela olhou para mim. – Sombra mostrou que o amor não tem nojo. Então, antes de julgar, tentem entender. – Ela sorriu. – E, se ainda acharem estranho, pensem em quantas vezes o Sombra estava ao lado do Diego quando ele caiu. Ele lambeu lágrimas. Isso também faz parte do amor.
As crianças ficaram em silêncio. Um menino perguntou:
– Então, Sombra, você lambeu porque ama?
Eu abanei o rabo e lambi a mão dele. Ele riu. E, de certa forma, a conversa terminou ali. Alguns ainda achavam esquisito, mas agora compreendiam. A professora nos transformou em tema de reflexão. Diego, que estava com a cabeça baixa, levantou o rosto e disse:
– Se um dia vocês vomitarem e precisarem de ajuda, vou chamar o Sombra.
A sala explodiu em risos. E, com um senso de humor que eu não sabia que tinha, comecei a latir como se dissesse “Eu topo!”
Lições sem treinamento
Ao voltar para casa naquele dia, pensei no que aconteceu. A imagem de Diego vomitando, o cheiro ácido, o meu ato de lamber, a reação dos pais, a repercussão na escola. Pensei em como gestos instintivos podiam ter significados tão profundos. Lamber o vômito não foi um ato heróico, não foi planejado. Foi natural. Foi amor em sua forma mais crua. Não houve nojo, não houve repulsa. Houve cuidado.
Percebi que muitas coisas que fazemos instintivamente carregam lições. Uma lambida pode ser um símbolo de apoio. Uma rampa pode ser símbolo de inclusão. Uma professora que erra pode ensinar sobre mudança. A escola que nos rejeitou pode se tornar exemplo. Um menino que não andava, agora anda com as mãos. Uma mãe pode ver beleza no ato de lamber uma sujeira. Tudo é questão de interpretação.
Entendi que ser “um cão de apoio sem treinamento” não significa não saber nada. Significa que meu manual é o amor. Eu não sigo comandos; sigo o coração. E este coração, que bate em ritmo com o de Diego, me guia sempre.
Reflexões finais
À noite, enquanto Diego fazia a lição de casa e eu dormia aos seus pés, ouvi a mãe dizer ao pai:
– Você viu a confusão que deu? Todo mundo comentou. Alguns disseram que deveriam proibir o cachorro em casa. Outros elogiaram. Mas eu acho que estamos fazendo a diferença. Olhe para ele. Ele está feliz.
O pai respondeu:
– As pessoas têm medo do que não entendem. Acham estranho, julgam. Mas, quando você vive algo assim, percebe que há beleza até no que parece feio. E que amor é amor.
Eu sorri internamente. Sou apenas um cachorro. Não uso palavras. Não sei escrever. Mas sei sentir. Sei que, naquele dia, quando Diego vomitou e eu lambi, criei um laço ainda mais forte. Sei que, para sempre, ele saberá que não precisa se envergonhar. Sei que, se isso acontecer de novo, farei de novo, sem pensar. Sei que nosso amor não cabe no rótulo de “limpo” ou “sujo”. Cabe na palavra “incondicional”.
Então, enquanto a casa se enchia novamente de calma, fechei os olhos e agradeci. Agradeci por ser chamado de “nojento” se necessário, se isso significar que Diego se sente amado. Agradeci por cada criança que entendeu. Agradeci por cada pai que repensou. Agradeci por cada professora que mudou. Agradeci por cada momento que nos ensinou que amor é ação. E, acima de tudo, agradeci por estar ali, ao lado de Diego, lambendo suas lágrimas, seus restos de comida, suas vitórias e seus fracassos. Porque, no fim, esse é meu papel. E é o papel mais lindo que eu poderia receber.
A história de “Diego Vomita e Eu Lambo” não é sobre nojo. É sobre quebrar tabus. É sobre estar presente nos momentos feios. É sobre mostrar que, às vezes, os atos mais simples são os que carregam as maiores lições. É sobre amar sem limites, sem barreiras, sem rótulos. É sobre ser Sombra. E, depois daquela noite, aprendi que, se o amor fosse um cheiro, teria aroma de vomito limpo por carinho. E isso, para mim, é poesia.
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